sábado, 15 de fevereiro de 2014

O NASCIMENTO E O PRIMEIRO CONTATO COM O OBJETO

Desamparo

O nascimento do bebê é um momento crucial para o desamparo originário. É neste momento que o indivíduo, no caso o bebê, sofre as mais cruéis perdas e intrusões do mundo externo. Não preparado para essas intrusões, o bebê perde sua identidade, onde, é totalmente dependente do mundo externo. Essas condições são armazenadas na memória do indivíduo, se não elaboradas, esse passa a reviver a experiência mais tarde, Winnicott salienta esta afirmação.
Segundo este autor:

O ‘continuar a ser’ pessoal do indivíduo é interrompido por reações a intrusões prolongadas. Quando o trauma do nascimento é significativo, cada um dos aspectos da intrusão e da reação é, digamos, entalhado na memória do indivíduo da mesma forma como nos acostumamos a ver quando os pacientes revivem experiências traumáticas de uma época mais tardia (o tipo de experiências que por vezes são recuperadas com sucesso por uma ab-reação ou uma hipnose). [...] Quando estudamos um paciente em análise, porém, encontramos uma ordem de detalhes que nunca deixa de nos impressionar. (1949/2000, p. 265).


Todavia, Winnicott (1949/2000) postula que, dos aspectos principais, ou mais típicos da verdadeira memória do nascimento, é o sentimento de ser agarrado por algo do ambiente. Agarrado em uma maneira simbólica, ou seja, o mundo do bebê é invadido por intrusões exteriores que o mesmo tende a adaptar-se, e em conjunto, na época do nascimento, este bebê necessita de uma adaptação ativa do ambiente. Ainda em Winnicott (1949/2000), salienta que o bebê é capaz de suportar essa tensão, essas intrusões vindas do externo, até certo ponto, um período limitado do tempo. O fato é que ele não sabe, e nem tem como saber, a duração do parto, portanto Winnicott diz:

Faz parte desse sentimento de desesperança a intolerável experiência de sofrer o efeito de algo sem ter a mínima ideia de quando isto irá terminar. [...] Seria possível dizer que muitos bebês poderiam ser ajustados caso conseguíssemos informa-lhes, durante um parto prolongado, que o processo durará apenas um período de tempo limitado. O bebê, porém, não tem como compreender a nossa linguagem. (p. 265-266).

É um sofrimento atroz. Além das intrusões do mundo exterior, o bebê se depara com a perda do seu mundo perfeito, onde nada lhe faltava. Evidencia-se a dificuldade em lidar com essa situação justamente porque o ego ainda não esta formado. Para isso a mãe é um objeto externo essencial para acolher este bebê. É o objeto primário, é naquele momento, o que o bebê mais precisa.
Apesar de este pequeno sujeito precisar muito do objeto externo (mãe), este (objeto externo) exerce uma fonte de violência, pois, provoca o sentimento de perda e abandono (ROCHA, 2012).

É com a insuspeitada agonia do choro que o bebê revela as consequências da separação, pelo corte, de seu objeto primário. Temos aí a expressão máxima de sua aflição diante da perfeição perdida que o fazia conhecer somente a plenitude, a bem-aventurança e o repouso. A perda de um modelo, que proporcionava a satisfação ilimitada, o repouso absoluto e a quietude plena – ainda que nós o pensemos como um mito constitutivo da psique – configura-se pela separação do corpo materno. A unidade, deixada agora para trás, dá lugar à ferida provocada por esse corte inicial cuja cicatriz marcará, primeiramente e para sempre, o corpo do sujeito. (ROCHA, 2012, p. 23).

Tirar o bebê de sua perfeição, do mundo que nada lhe faltava, de sua plenitude, é um tanto sofredor, o que acarretará em todo o processo de desenvolvimento ao longo dessa vida. É o primeiro contato com o mundo externo, onde haverá toda a mudança, a invasão do mundo pulsional e também a violência sensorial.
Rocha explica a afirmação descrita acima:

Ao lado dessa primeira ferida, vive-se – a partir do excesso – a primeira violência que se constitui pela invasão pulsional, sensorial e objetal que inunda o bebê nos primórdios da vida. É, portanto, a partir desse trauma primário, cenário para o desespero incontornável do sujeito, que podemos localizar o espaço em que se dá esse excesso e compreender que, se a experiência é sentida como demasiada, é justamente porque a condição de despreparo e insuficiência própria para dar conta de tudo isso é a vivência maior desse momento. O atravessamento pulsional que marca o corpo e funda o psíquico é, ainda, contemporâneo da violência sensorial que inunda o pequeno sujeito por todos os lados. Além disso, o objeto como projeto para o bebê, ou seja, como mensageiro da cultura e como ser de desejo em relação ao bebê, exerce, assim, uma fonte de violência, além de atualizar, com sua presença, perda e abandono para ele.  (2012, p. 23-24).

Para Winnicott (1949/2000) a reação à invasão dessas intrusões passa a ser entalhada na memória em forma de trauma, ao passo que o adulto o reviva simbolicamente mais tarde, entretanto, esse autor apresenta a ab-reação, entre outros, como alternativa para a possível recuperação deste estado traumático.
Neste mesmo ano Lacan (1949/1998), em seu escrito sobre a angústia, retrata que a prematuração humana estabelece marcas no psiquismo que para ele, é irrecuperável. Em outro escrito Lacan (1962-1963/2005) avulta a ideia citada acima por Winnicott (1949/2000) em virtude do primeiro momento da angústia, porém, da um passo adiante e propõe o momento ao qual refere ser mais decisivo na angústia “de que se trata, a angústia do desmame, não é propriamente que, nesse momento, o seio faça falta à necessidade do sujeito, mas, antes, que a criança pequena cede o seio a que está apensa como se fosse uma parte dela mesma. (LACAN, 1962-1963/2005, p. 340).
A mãe, como já foi mencionado, é fonte de prazer, é aquela que supri as necessidades primevas do bebê, e ao mesmo tempo aquela que o abandona. (ROCHA, 2012). Diante desta afirmação e acrescentando a angústia vivida pelo bebê nesse momento como sinal do desamparo, Lacan (1962-1963/2005) diz:

É na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que se produz o momento de surpresa mais primitivo, às vezes apreensível na expressão do recém-nascido, na qual passa pela primeira vez o reflexo – relacionado com esse órgão que é muito mais que um objeto, que é o próprio sujeito – de algo que serve de suporte, de raiz para o que, num outro registro, foi chamado de desamparo. (p. 340).

Levando-se em consideração que o bebê se encontra nesse momento, ao que Spitz (2004) chamou de estágio Não-objetal, onde, o bebê não consegue distinguir uma coisa de outra, não distingue o externo de seu próprio corpo, e não vivencia esse externo como sendo separado dele. Este percebe o seio materno, forma de suprir suas necessidades, como sendo parte de si.
Apesar da ideia citada acima, de Spitz (2004), estar ligada a contemporaneidade, ou seja, ser atual, teóricos mais primitivos, como Melanie Klein (1937), já havia exposto essa ideia em sua profundidade.
Melanie Klein (1937/1996) traz essa questão de perceber o seio materno como fonte de satisfação, também quando trata da ambivalência afetiva 1, amor e ódio pelo mesmo objeto. Neste contexto, Melanie Klein, ainda em 1937, salienta que a mãe, sendo o primeiro objeto de amor e ódio do bebê, tende a satisfazer as necessidades primevas, a alimentação, “aliviando seus sentimentos de fome e lhe oferecendo o prazer sensual, que obtém quando sua boca é estimulada ao chupar o peito”. (p.347).
Melanie Klein (1937/1996) ressalta que essa situação de alimentação por meio do seio, é essencial a sexualidade da criança, portanto, é sua expressão inicial. Contudo, remete ao bebê, uma sensação temporária de segurança. “Isso se aplica tanto ao bebê quanto ao adulto, tanto às formas simples de amor quanto às suas manifestações mais elaboradas”. (p.348).
Muitos teóricos como, Melanie Klein 2 1882-1960, Donald Woods Winnicott 3 1896-1971, Jacques Lacan 1901-198, entre outros mais contemporâneos, retratam a questão do nascimento. Alguns dispondo de criticas aos pensamentos freudianos, outros seguindo a risca os seus escritos, provavelmente seja por isso que existam tantas coincidências entre uma e outra, ainda que haja também divergências 4.
Outra questão referente ao período pós-natal, retomada por Melanie Klein (1952/1991), baseada no escrito de Freud Inibições, sintomas e angústia (original de 1926), avulta o conceito de ansiedade advinda de fontes externas 5 do bebê. Melanie Klein (1952/1991) relata que “a primeira fonte externa de ansiedade pode ser encontrada na experiência do nascimento”. (p. 86). Essa experiência passa a ser um padrão para todas as posteriores, uma vez que, a condição do nascimento, em toda sua complexidade, “está fadada a influenciar as primeiras relações do bebê com o mundo externo”. (MELANIE KLEIN, 1952/1991, p. 86).
Para Rocha (2012), com todo o processo do nascimento, das invasões pulsionais e sensoriais, assim como a representação da violência do objeto externo denominado mãe, com um plano mais fundamental, situam-se a experiência de desamparo, assim como outras vivências decorrentes desta. É também a primeira vivência que o bebê experimente de dor e agonia.
Vislumbra-se nesse cenário inicial, onde “esse estado é vivido em um espaço que se situa entre a tendência a uma descarga imediata das tensões e tentativa de contê-las”. (ROCHA, 2012, p. 24). Advém de movimentos antagônicos, que se origina o psiquismo, posteriormente, “inaugura um terreno de origem sobre o qual se assentarão as primeiras experiências do ser humano”. (ROCHA, 2012, p. 24).
A experiência de revivencia, ou repetição de situações primevas, oriundas às marcas no psiquismo 6, traz à discussão de vários teóricos e seus seguidores, como exposto aqui resumidamente em Winnicott (1949/2000), Melanie Klein (1937), e Rocha (2012).
Winnicott (1956/2000) no texto “A Preocupação Materna Primária”, salienta a importância da mãe na etapa do desenvolvimento do bebê. É interessante observar os dois tipos de ambientes descritos por este autor, o ambiente não suficiente bom, que distorce o desenvolvimento do bebê, e o ambiente suficientemente bom, que possibilita ao bebê alcançar o seu desenvolvimento saudável.
Rocha (2012), também relata a importância da mãe na constituição psíquica do bebê, assim como as vicissitudes de um cenário vivo, ou seja, as mudanças que ocorrem ao longo do desenvolvimento psíquico.

O universo primário da constituição psíquica é, antes de tudo, um universo em movimento: o mundo interno do bebê, a força pulsional que o habita, suas respostas em atos, as sensações que a mãe experimenta, sua consequente ação, tudo isso vai configurar um cenário vivo. Mais do que oferecer o objeto de uma necessidade, a mãe oferece a possibilidade de compaixão e de condução dos movimentos do bebê, fazendo desse campo original um espaço rude habitado pela dor e desespero, um campo delimitado em cujo tecido brotarão as mais ricas experiência, desde que o bebê encontre um reflexo, cuja origem está no corpo da mãe. Processo que desemboca na identificação, marcando o lugar privilegiado que a mãe vai ocupar nesse espaço original, o qual servirá como a alavanca da experiência narcísica e, portanto, da configuração de todo o plano da idealidade. (p. 36).

A mãe é quem vai direcionar o bebê para o mundo, é com os olhos dela que ele enxergará até certo ponto de sua vida. Winnicott (1945/2000) no texto “Desenvolvimento Emocional Primitivo”, coloca que o bebê, na sua vida primeva, antes que ele se reconheça e reconheça o outro como corpo inteiro, é por meio do olhar da mãe, ou seja, o que os outros são que este se constituirá.
Para Rocha (2012), a mãe opera junto à sensibilidade, para que o espaço psíquico do bebê possa, sobretudo, encontrar um possível espaço de representações. Isso se dá devido à comunicação primitiva entre mãe e filho.
Partindo da ideia do desamparo originário, Rocha ilustra que:

“(...) a pré-maturação humana perante a vida que nos adverte que é a partir do trauma primário – a separação do corpo materno e a insuficiência própria para a sobrevivência – que o recém-nascido irá agir” (2012, p. 37, grifos meus).

Baseado na ideia descrita acima se pode compreender que, apesar do desamparo ser um tema pouco explorado, é de extrema importância para a compreensão do psiquismo. Por meio do desamparo, como já foi comentado, abre-se as portas para o desenvolvimento.
Muitas vezes o que acontece, já na vida adulta, é a repetição da experiência do nascimento, o indivíduo não revive a situação, e sim vive a experiência do desamparo e, não sabe nem o por que de tal sensação?
O objetivo aqui foi trazer um pouco a experiência do nascimento e a primeira relação com o objeto externo, para que possa ter uma base do conceito do desamparo originário.
Conclui-se ao que venha ser a experiência do nascimento, que muitos teóricos aqui citados a vê como um momento crucial para a decorrência angustiante, traumática e a vivencia do estado de desamparo se deparado a condição de dependência do infante devido à impossibilidade psicomotora de suprir suas próprias necessidades. No entanto, essa situação de dependência direcionará esse pequeno ser direto para a relação com o outro, o que abrirá caminho para o desenvolvimento psíquico.




1 Tema mais explorado por Melanie Klein e Joan Riviere em Amor, Odio e Reparação: as emoções básicas do homem do ponto de vista psicanalítico. Do original em inglês: Love, hate and reparation. Traduzido da 4.a edição publicada em 1967 por The Hogarth Press e The Institute of Psycho-Analysis, Londres, Inglaterra.
2 No livro Amor, Culpa e Reparação e Outros Trabalhos 1921-1945, Melanie Klein dispõe de um escrito cujo nome é Amor, Culpa e Reparação, de 1937, que, além de outras questões advindas das defesas arcaicas do ser humano e sua ambivalência afetiva, trata a questão da situação emocional do bebê diante às suas necessidades primitivas, a fome. Tratando da importância do desenvolvimento psíquico diante a questões tão primitivas, porém, fixadas por toda existência da pessoa.
3 Em Da Pediatria à Psicanálise 1931-1956, Donald Woods Winnicott também retrata questões relacionadas ao nascimento como: Memórias do Nascimento, Trauma do Nascimento e Ansiedade 1949. traz a Experiência do Nascimento, assim como os impasses para o desenvolvimento.
4 René A. Spitz (1887-1974) se inclina a concordar com a problemática do trauma do nascimento em relação à primeira manifestação da ansiedade imposta a repetições dadas como destino a cada homem. Em virtude a esta discordância, Spitz realizou diversas observações diretas para obter registros dos comportamentos do bebê em seu nascimento. Registrou, em seus mínimos detalhes, 35 partos realizados sem anestésicos ou sedativos. Em 29 destes partos, o comportamento do bebê foi filmado durante o período de expulsão, ou segundos após o parto. A filmagem continuou durante duas semanas seguintes, incluindo os comportamentos durante as mamadas e reações a estímulos. Diante destes registros, Spitz mostra que a reação do recém-nascido, na maioria dos casos, em que ele chamou de normal, dificilmente pode ser considerada traumático.  O mesmo revela que a reação é rápida, pouco violenta e passageira. Retrata que as reações e dificuldades da criança em respirar depois do parto expressa aspectos negativos, porém, breves. Para tal, baseou-se em seu experimento exposto no livro “O primeiro ano de vida”, tendo a 3 edição publicada em 2004, onde se dirigiu para o escrito “Primeiros protótipos de reações afetivas” para tais conclusões.
5 Neste escrito, Melanie Klein também trabalha as fontes internas de ansiedades decorrentes a vida pós-natal do bebê. Fonte a qual pertence a assuntos de tamanha complexidade e importância, que não se conseguiria abordar por completo neste momento.
6 Uma Nota Sobre o ‘Bloco Mágico’, texto escrito por Freud em 1924, porém publicado um ano depois. Trata-se de uma analogia que ele faz de um brinquedo, o bloco mágico, ao psiquismo, necessariamente a suas marcas decorrentes as formações primitivas. Segundo Freud, neste escrito, Bloco mágico constitui-se por uma prancha de cera, coberto por uma folha, um papel celulose e encerado. O bloco é utilizável repetidas vezes como uma lousa, porém, é composta por traços permanentes, os primeiros traços escrito na folha de cobertura, “cujas depressões nela feitas constituem a escrita”. Essa analogia serve para retratar que tudo o que se faz é um revestimento de um traço mnêmico já estabelecido muito antes, portanto, Freud dá o exemplo do Bloco Mágico. Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. v. 19.


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