O nascimento do bebê é
um momento crucial para o desamparo originário. É neste momento que o
indivíduo, no caso o bebê, sofre as mais cruéis perdas e intrusões do mundo
externo. Não preparado para essas intrusões, o bebê perde sua identidade, onde,
é totalmente dependente do mundo externo. Essas condições são armazenadas na
memória do indivíduo, se não elaboradas, esse passa a reviver a experiência
mais tarde, Winnicott salienta esta afirmação.
Segundo este autor:
O ‘continuar a ser’ pessoal do
indivíduo é interrompido por reações a intrusões prolongadas. Quando o trauma
do nascimento é significativo, cada um dos aspectos da intrusão e da reação é,
digamos, entalhado na memória do indivíduo da mesma forma como nos acostumamos
a ver quando os pacientes revivem experiências traumáticas de uma época mais
tardia (o tipo de experiências que por vezes são recuperadas com sucesso por
uma ab-reação ou uma hipnose). [...] Quando estudamos um paciente em análise,
porém, encontramos uma ordem de detalhes que nunca deixa de nos impressionar. (1949/2000, p. 265).
Todavia, Winnicott
(1949/2000) postula que, dos aspectos principais, ou mais típicos da verdadeira
memória do nascimento, é o sentimento de ser agarrado por algo do ambiente.
Agarrado em uma maneira simbólica, ou seja, o mundo do bebê é invadido por
intrusões exteriores que o mesmo tende a adaptar-se, e em conjunto, na época do
nascimento, este bebê necessita de uma adaptação ativa do ambiente. Ainda em
Winnicott (1949/2000), salienta que o bebê é capaz de suportar essa tensão,
essas intrusões vindas do externo, até certo ponto, um período limitado do
tempo. O fato é que ele não sabe, e nem tem como saber, a duração do parto,
portanto Winnicott diz:
Faz
parte desse sentimento de desesperança a intolerável experiência de sofrer o
efeito de algo sem ter a mínima ideia de quando isto irá terminar. [...] Seria
possível dizer que muitos bebês poderiam ser ajustados caso conseguíssemos
informa-lhes, durante um parto prolongado, que o processo durará apenas um
período de tempo limitado. O bebê, porém, não tem como compreender a nossa
linguagem. (p. 265-266).
É um sofrimento atroz. Além das intrusões do mundo exterior, o bebê se
depara com a perda do seu mundo perfeito, onde nada lhe faltava. Evidencia-se a
dificuldade em lidar com essa situação justamente porque o ego ainda não esta
formado. Para isso a mãe é um objeto externo essencial para acolher este bebê.
É o objeto primário, é naquele momento, o que o bebê mais precisa.
Apesar de este pequeno sujeito precisar muito do objeto externo (mãe),
este (objeto externo) exerce uma fonte de violência, pois, provoca o sentimento
de perda e abandono (ROCHA, 2012).
É
com a insuspeitada agonia do choro que o bebê revela as consequências da
separação, pelo corte, de seu objeto primário. Temos aí a expressão máxima de
sua aflição diante da perfeição perdida que o fazia conhecer somente a
plenitude, a bem-aventurança e o repouso. A perda de um modelo, que
proporcionava a satisfação ilimitada, o repouso absoluto e a quietude plena –
ainda que nós o pensemos como um mito constitutivo da psique – configura-se
pela separação do corpo materno. A unidade, deixada agora para trás, dá lugar à
ferida provocada por esse corte inicial cuja cicatriz marcará, primeiramente e
para sempre, o corpo do sujeito. (ROCHA, 2012, p. 23).
Tirar o bebê de sua perfeição, do mundo que nada lhe faltava, de sua
plenitude, é um tanto sofredor, o que acarretará em todo o processo de
desenvolvimento ao longo dessa vida. É o primeiro contato com o mundo externo,
onde haverá toda a mudança, a invasão do mundo pulsional e também a violência
sensorial.
Rocha explica a afirmação descrita acima:
Ao
lado dessa primeira ferida, vive-se – a partir do excesso – a primeira
violência que se constitui pela invasão pulsional, sensorial e objetal que
inunda o bebê nos primórdios da vida. É, portanto, a partir desse trauma
primário, cenário para o desespero incontornável do sujeito, que podemos
localizar o espaço em que se dá esse excesso e compreender que, se a
experiência é sentida como demasiada, é justamente porque a condição de
despreparo e insuficiência própria para dar conta de tudo isso é a vivência
maior desse momento. O atravessamento pulsional que marca o corpo e funda o
psíquico é, ainda, contemporâneo da violência sensorial que inunda o pequeno
sujeito por todos os lados. Além disso, o objeto como projeto para o bebê, ou
seja, como mensageiro da cultura e como ser de desejo em relação ao bebê,
exerce, assim, uma fonte de violência, além de atualizar, com sua presença,
perda e abandono para ele. (2012, p.
23-24).
Para Winnicott (1949/2000) a reação à invasão dessas intrusões passa a
ser entalhada na memória em forma de trauma, ao passo que o adulto o reviva
simbolicamente mais tarde, entretanto, esse autor apresenta a ab-reação, entre outros, como alternativa para a
possível recuperação deste estado traumático.
Neste mesmo ano Lacan (1949/1998), em seu escrito sobre a angústia, retrata
que a prematuração humana estabelece marcas no psiquismo que para ele, é
irrecuperável. Em outro escrito Lacan (1962-1963/2005) avulta a ideia citada
acima por Winnicott (1949/2000) em virtude do primeiro momento da angústia,
porém, da um passo adiante e propõe o momento ao qual refere ser mais decisivo
na angústia “de que se trata, a angústia do desmame, não é propriamente que,
nesse momento, o seio faça falta à necessidade do sujeito, mas, antes, que a
criança pequena cede o seio a que está apensa como se fosse uma parte dela
mesma. (LACAN, 1962-1963/2005, p. 340).
A mãe, como já foi mencionado, é fonte de prazer, é aquela que supri as
necessidades primevas do bebê, e ao mesmo tempo aquela que o abandona. (ROCHA,
2012). Diante desta afirmação e acrescentando a angústia vivida pelo bebê nesse
momento como sinal do desamparo, Lacan (1962-1963/2005) diz:
É
na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que se produz o momento de
surpresa mais primitivo, às vezes apreensível na expressão do recém-nascido, na
qual passa pela primeira vez o reflexo – relacionado com esse órgão que é muito
mais que um objeto, que é o próprio sujeito – de algo que serve de suporte, de
raiz para o que, num outro registro, foi chamado de desamparo. (p. 340).
Levando-se em consideração que o bebê se encontra nesse momento, ao que
Spitz (2004) chamou de estágio Não-objetal, onde, o bebê não consegue
distinguir uma coisa de outra, não distingue o externo de seu próprio corpo, e
não vivencia esse externo como sendo separado dele. Este percebe o seio
materno, forma de suprir suas necessidades, como sendo parte de si.
Apesar da ideia citada acima, de Spitz (2004), estar ligada a
contemporaneidade, ou seja, ser atual, teóricos mais primitivos, como Melanie
Klein (1937), já havia exposto essa ideia em sua profundidade.
Melanie Klein (1937/1996) traz essa questão de perceber o seio materno
como fonte de satisfação, também quando trata da ambivalência afetiva 1, amor e ódio pelo mesmo objeto. Neste
contexto, Melanie Klein, ainda em 1937, salienta que a mãe, sendo o primeiro
objeto de amor e ódio do bebê, tende a satisfazer as necessidades primevas, a
alimentação, “aliviando seus sentimentos de fome e lhe oferecendo o prazer
sensual, que obtém quando sua boca é estimulada ao chupar o peito”. (p.347).
Melanie Klein (1937/1996) ressalta que essa situação de alimentação por
meio do seio, é essencial a sexualidade da criança, portanto, é sua expressão
inicial. Contudo, remete ao bebê, uma sensação temporária de segurança. “Isso
se aplica tanto ao bebê quanto ao adulto, tanto às formas simples de amor
quanto às suas manifestações mais elaboradas”. (p.348).
Muitos teóricos como, Melanie Klein 2
1882-1960, Donald Woods Winnicott 3 1896-1971,
Jacques
Lacan 1901-198, entre outros
mais contemporâneos, retratam a questão do nascimento. Alguns dispondo de
criticas aos pensamentos freudianos, outros seguindo a risca os seus escritos,
provavelmente seja por isso que existam tantas coincidências entre uma e outra,
ainda que haja também divergências 4.
Outra questão referente ao período pós-natal, retomada por Melanie Klein
(1952/1991), baseada no escrito de Freud Inibições,
sintomas e angústia (original de 1926), avulta o conceito de ansiedade
advinda de fontes externas 5 do bebê.
Melanie Klein (1952/1991) relata que “a primeira fonte externa de ansiedade
pode ser encontrada na experiência do nascimento”. (p. 86). Essa experiência
passa a ser um padrão para todas as posteriores, uma vez que, a condição do
nascimento, em toda sua complexidade, “está fadada a influenciar as primeiras relações
do bebê com o mundo externo”. (MELANIE KLEIN, 1952/1991, p. 86).
Para Rocha (2012), com todo o processo do nascimento, das invasões
pulsionais e sensoriais, assim como a representação da violência do objeto
externo denominado mãe, com um plano mais fundamental, situam-se a experiência
de desamparo, assim como outras vivências decorrentes desta. É também a
primeira vivência que o bebê experimente de dor e agonia.
Vislumbra-se nesse cenário inicial, onde “esse estado é vivido em um
espaço que se situa entre a tendência a uma descarga imediata das tensões e
tentativa de contê-las”. (ROCHA, 2012, p. 24). Advém de movimentos antagônicos,
que se origina o psiquismo, posteriormente, “inaugura um terreno de origem
sobre o qual se assentarão as primeiras experiências do ser humano”. (ROCHA,
2012, p. 24).
A experiência de revivencia, ou repetição de situações primevas, oriundas às marcas no psiquismo 6,
traz à discussão de vários teóricos e seus seguidores, como exposto aqui
resumidamente em Winnicott (1949/2000), Melanie Klein (1937), e Rocha (2012).
Winnicott (1956/2000) no texto “A Preocupação Materna Primária”,
salienta a importância da mãe na etapa do desenvolvimento do bebê. É
interessante observar os dois tipos de ambientes descritos por este autor, o
ambiente não suficiente bom, que distorce o desenvolvimento do bebê, e o
ambiente suficientemente bom, que possibilita ao bebê alcançar o seu
desenvolvimento saudável.
Rocha (2012), também relata a importância da mãe na constituição
psíquica do bebê, assim como as vicissitudes de um cenário vivo, ou seja, as mudanças
que ocorrem ao longo do desenvolvimento psíquico.
O
universo primário da constituição psíquica é, antes de tudo, um universo em
movimento: o mundo interno do bebê, a força pulsional que o habita, suas
respostas em atos, as sensações que a mãe experimenta, sua consequente ação,
tudo isso vai configurar um cenário vivo. Mais do que oferecer o objeto de uma
necessidade, a mãe oferece a possibilidade de compaixão e de condução dos
movimentos do bebê, fazendo desse campo original um espaço rude habitado pela
dor e desespero, um campo delimitado em cujo tecido brotarão as mais ricas
experiência, desde que o bebê encontre um reflexo, cuja origem está no corpo da
mãe. Processo que desemboca na identificação, marcando o lugar privilegiado que
a mãe vai ocupar nesse espaço original, o qual servirá como a alavanca da
experiência narcísica e, portanto, da configuração de todo o plano da
idealidade. (p. 36).
A mãe é quem vai direcionar o bebê para o mundo, é com os olhos dela que
ele enxergará até certo ponto de sua vida. Winnicott (1945/2000) no texto
“Desenvolvimento Emocional Primitivo”, coloca que o bebê, na sua vida primeva,
antes que ele se reconheça e reconheça o outro como corpo inteiro, é por meio
do olhar da mãe, ou seja, o que os outros são que este se constituirá.
Para Rocha (2012), a mãe opera junto à sensibilidade, para que o espaço
psíquico do bebê possa, sobretudo, encontrar um possível espaço de
representações. Isso se dá devido à comunicação primitiva entre mãe e filho.
Partindo da ideia do desamparo originário, Rocha ilustra que:
“(...)
a pré-maturação humana perante a vida que nos adverte que é a partir do trauma primário – a separação do corpo
materno e a insuficiência própria para a sobrevivência – que o recém-nascido irá agir” (2012, p. 37, grifos meus).
Baseado na ideia descrita acima se pode compreender que, apesar do
desamparo ser um tema pouco explorado, é de extrema importância para a
compreensão do psiquismo. Por meio do desamparo, como já foi comentado, abre-se
as portas para o desenvolvimento.
Muitas vezes o que acontece, já na vida adulta, é a repetição da
experiência do nascimento, o indivíduo não revive a situação, e sim vive a
experiência do desamparo e, não sabe nem o por que de tal sensação?
O objetivo aqui foi trazer um pouco a experiência do nascimento e a
primeira relação com o objeto externo, para que possa ter uma base do conceito
do desamparo originário.
Conclui-se ao que venha ser a experiência do nascimento, que muitos
teóricos aqui citados a vê como um momento crucial para a decorrência angustiante,
traumática e a vivencia do estado de desamparo se deparado a condição de
dependência do infante devido à impossibilidade psicomotora de suprir suas
próprias necessidades. No entanto, essa situação de dependência direcionará
esse pequeno ser direto para a relação com o outro, o que abrirá caminho para o
desenvolvimento psíquico.
1 Tema mais explorado por Melanie
Klein e Joan Riviere em Amor, Odio e
Reparação: as emoções básicas do homem do ponto de vista psicanalítico. Do
original em inglês: Love, hate and reparation. Traduzido da 4.a edição
publicada em 1967 por The Hogarth Press e The Institute of Psycho-Analysis,
Londres, Inglaterra.
2 No livro
Amor, Culpa e Reparação e Outros Trabalhos 1921-1945, Melanie Klein dispõe
de um escrito cujo nome é Amor, Culpa e
Reparação, de 1937, que, além de
outras questões advindas das defesas arcaicas do ser humano e sua ambivalência
afetiva, trata a questão da situação emocional do bebê diante às suas
necessidades primitivas, a fome. Tratando da importância do desenvolvimento
psíquico diante a questões tão primitivas, porém, fixadas por toda existência
da pessoa.
3
Em Da Pediatria à Psicanálise 1931-1956, Donald Woods Winnicott também retrata questões relacionadas ao nascimento como: Memórias do Nascimento, Trauma do Nascimento e Ansiedade 1949. traz a Experiência do Nascimento, assim como os impasses para o desenvolvimento.
4 René A. Spitz (1887-1974) se
inclina a concordar com a problemática do trauma do nascimento em relação à
primeira manifestação da ansiedade imposta a repetições dadas como destino a
cada homem. Em virtude a esta discordância, Spitz realizou diversas observações
diretas para obter registros dos comportamentos do bebê em seu nascimento.
Registrou, em seus mínimos detalhes, 35 partos realizados sem anestésicos ou
sedativos. Em 29 destes partos, o comportamento do bebê foi filmado durante o
período de expulsão, ou segundos após o parto. A filmagem continuou durante
duas semanas seguintes, incluindo os comportamentos durante as mamadas e reações
a estímulos. Diante destes registros, Spitz mostra que a reação do
recém-nascido, na maioria dos casos, em que ele chamou de normal, dificilmente
pode ser considerada traumático. O mesmo
revela que a reação é rápida, pouco violenta e passageira. Retrata que as
reações e dificuldades da criança em respirar depois do parto expressa aspectos
negativos, porém, breves. Para tal, baseou-se em seu experimento exposto no
livro “O primeiro ano de vida”, tendo a 3 edição publicada em 2004, onde se
dirigiu para o escrito “Primeiros protótipos de reações afetivas” para tais
conclusões.
5 Neste escrito, Melanie Klein
também trabalha as fontes internas de ansiedades decorrentes a vida pós-natal
do bebê. Fonte a qual pertence a assuntos de tamanha complexidade e importância, que não se conseguiria abordar por completo neste momento.
6 Uma Nota Sobre o ‘Bloco Mágico’, texto escrito por Freud em 1924,
porém publicado um ano depois. Trata-se de uma analogia que ele faz de um
brinquedo, o bloco mágico, ao psiquismo, necessariamente a suas marcas
decorrentes as formações primitivas. Segundo Freud, neste escrito, Bloco mágico
constitui-se por uma prancha de cera, coberto por uma folha, um papel celulose
e encerado. O bloco é utilizável repetidas vezes como uma lousa, porém, é
composta por traços permanentes, os primeiros traços escrito na folha de
cobertura, “cujas depressões nela feitas constituem a escrita”. Essa analogia
serve para retratar que tudo o que se faz é um revestimento de um traço mnêmico
já estabelecido muito antes, portanto, Freud dá o exemplo do Bloco Mágico. Edição standard das obras completas de
Sigmund Freud. v. 19.
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