"Agora eu conheço esse grande susto de estar viva, tendo como único amparo exatamente o desamparo de estar viva. De estar viva - senti - terei que fazer o meu motivo e tema. Com delicada curiosidade, atenta à fome e à própria atenção, passei então a comer delicadamente viva os pedaços de pão".
(Clarice Lispector, em A Descoberta do Mundo, 1999).
O Conceito de Desamparo
O conceito de desamparo está inserido em diversos trabalhos, não tendo um estudo especifico deste tema. Dar-se-á inicio ao estudo do Desamparo, pela sua etimologia.
O conceito de desamparo está inserido em diversos trabalhos, não tendo um estudo especifico deste tema. Dar-se-á inicio ao estudo do Desamparo, pela sua etimologia.
Em linhas gerais, segundo Ferreira (2001), a palavra desamparo é um
substantivo masculino que significa falta de amparo e abandono.
Para Ferreira (1986) apud Menezes (2012).
“Desamparo” é uma
palavra formada pela soma do prefixo des
com o substantivo masculino “amparo”. Des
derivado do latim ex, tem o sentido
de “separação”, “transformação”, “intensidade”, “ação contrária”, “negação”,
“privação”. Amparo é derivado do verbo “amparar”, do latim anteparare, que significa “pôr
algo à frente para proteger”, indicando um elemento concreto em jogo nas
nuances do termo “amparo”. É interessante salientar que um dos significados de “amparar” é “dar meios de vida a; sustentar”;
“suster para impedir de cair”; “agarrar-se a alguma coisa para não cair;
escorar-se, apoiar-se”. Desse modo, “amparo” significa “ação ou efeito de
amparar; pessoa ou coisa que ampara; escora, esteio, arrimo”; “auxílio, ajuda”;
“refúgio, abrigo”; e, no sentido figurado, refere-se a “proteção, auxílio,
socorro”. (p.
23-24).
Partindo deste
referencial, pode-se dizer que o ser humano mantém uma relação de dependência,
comparado aos animais irracionais.
Deve-se ressaltar que o
objetivo aqui, é descrever sucintamente, o significado da palavra e do conceito
desamparo. Outras questões serão trabalhadas no decorrer dos textos. Para tal
fim, basear-se-á em pressupostos teóricos psicanalíticos.
Freud utilizou-se da palavra
Hilflosigkeit, em Alemão, para conceituar o estado de desamparo¹. No Projeto
para uma Psicologia Científica (1895/1996), Freud traz um posicionamento
neurológico para o que vem a ser experiência de satisfação que advém do próprio
desamparo original.
Ainda neste escrito,
Freud (1985/1996) retrata a questão da impossibilidade do infante em satisfazer
suas próprias necessidades devido à falta de recursos motores e psíquicos,
diante disso, há uma necessidade de uma ação específica²
advinda do externo, para que este bebê possa diminuir certas tensões. A ação
específica é efetuada por ajuda alheia decorrente a atenção do adulto ante as
ações expressadas pelo bebê, como o grito e o choro, por exemplo. (FREUD,
1985/1996).
Outra questão
importante é o fato da ação específica estar relacionada à comunicação por vias
secundárias, assim, o bebê se relaciona com o mundo externo e o desamparo passa
a ser primordial para os motivos morais. (FREUD, 1985/1996).
Neste contexto, Freud
(1985/1996) diz:
[...] o estímulo só é passível de
ser abolido por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga
de Ǫὴ no interior
do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo externo
(fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode ser promovida
de determinadas maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de
promover essa ação específica. Ela se
efetua por ajuda alheia, quando a
atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga
através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a
importantíssima função secundária da comunicação,
e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte
primordial de todos os motivos morais.
(p. 370).
Mais tarde, em Inibições, sintomas
e angústia (1926/1996), Freud retoma a discussão sobre o desamparo e o
estado de dependência do infante. De um ponto de vista biológico, o autor
retrata que o bebê comparado a outros animais, tem uma existência intrauterina
curta, ante a esta situação, o bebê é lançado ao mundo precocemente. O perigo
do mundo externo passa a ter mais importância e o valor do objeto aumenta em
vista da impossibilidade do infante em satisfazer suas próprias necessidades.
Valendo-se da situação de perigo que a esse pequeno ser é estabelecido desde
muito cedo, é estabelecida a necessidade de cuidado que seguirá a esta criança
o resto de sua vida.
O
fator biológico é o longo período de tempo durante o qual o jovem da espécie
humana está em condições de desamparo e dependência. Sua existência
intra-uterina parece ser curta em comparação com a da maior parte dos animais,
sendo lançado ao mundo num estado menos acabado. Como resultado, a influência
do mundo externo real sobre ele é intensificada e uma diferenciação inicial
entre o ego e o id é promovida. Além disso, os perigos do mundo externo têm
maior importância para ele, de modo que o valor do objeto que pode somente
protegê-lo contra eles e tomar o lugar da sua antiga vida intra-uterina é
enormemente aumentado. O fator biológico, então, estabelece as primeiras
situações de perigo e cria a necessidade de ser amado que acompanhará a criança
durante o resto de sua vida. (FREUD, 1926/1996,
p. 151).
A diversidade dos teóricos que tratam do conceito do estado de desamparo
aqui nesse trabalho, passa a ser unificada, uma vez que, para base de tal
conceito recorre aos escritos freudianos, seja no projeto, seja nos escritos seguintes
que tratam do mesmo assunto.
Segundo Menezes (2012, p.25-26):
No dicionário Wahrig (2000) consta o seguinte verbete a respeito do termo Hilflorigkeit: “ estado de estar
hilflos, ou seja, desamparado, sem ajuda; sem saber o que fazer; sem proteção”.
A Hilflosigkeit de Freud diz
respeito à condição de “ausência de ajuda”, como possibilidade efetiva da
psíquica. Para ele o fato do bebê nascer imaturo e indefeso, tona-o dependente
do outro para sobreviver. O bebê precisa de ajuda de um outro, de uma “ação específica”,
para pôr fim à tensão interna que experimenta. É o desamparo original, fundante
e estrurante do psiquismo. (MENEZES, 2012, p. 27).
Na relação primitiva o
bebê precisa do outro, do objeto externo, sendo necessariamente a mãe. Como foi
citado acima, ele necessita de uma ação específica.
De acordo com a literatura,
Laplanche e Pontalis (2012) definem sucintamente o que a psicanálise compreende
sobre a “ação específica”.
Termo utilizado por
Freud em alguns dos seus primeiros escritos para designar o conjunto do
processo necessário à resolução da tensão interna criada pela necessidade
[...]. Para que a ação específica [...] se realize, é indispensável à presença
de um objeto específico e de uma série de condições externas (fornecimento de
comida no caso de fome) [...] o lactante, dado o seu desamparo original [...],
o auxílio exterior torna-se a condição prévia indispensável à satisfação da
necessidade. (p.
4-5).
Tratando- se ainda da ação especifica, é fundamental para que o bebê
sobreviva, já que este apresenta imaturidade e necessita da ajuda alheia. (DOCKHORN
et al., 2007).
Outros autores utilizaram-se do conceito de Freud para definir o estado
de desamparo (Hilflosigkeit), como Zimerman (2001), baseou-se no clássico,
“Inibições, Sintomas e Angústia” 1926, para explicar o estado mental de
desamparo que, segundo este autor, tem como consequência uma das angústias mais
terríveis. Zimerman (2001) considera que essa etapa da vida está ligada ao
conceito de trauma e acompanha o ser humano desde o nascimento, devido à
condição de neotenia, que significa a prematuração, já que o bebê, diferente a
qualquer espécie do reino animal, apresenta uma duradoura deficiência da
maturação neurológica e motora que o remete ao estado de absoluta dependência e
desamparo.
Mijolla (2005) conceitua desamparo ou desajuda, como impotência original
do bebê frente às suas necessidades primevas, para tanto, necessita da
intervenção do objeto para pôr fim ao sofrimento gerado por essa impotência. Esse
autor, assim como Zimerman (2001), associa o desamparo à teoria da angústia. O
bebê desajudado e/ou desamparado, incapaz de satisfazer suas necessidades, sem
meios para descarregar a excitação interna, já que este não predispõe de ações
adequadas nos primórdios da vida, sofrerá angústia automática.
No estado de desajuda, o bebê chora e reconhece a sua impotência,
chamando a atenção do objeto que pode o socorrer, cuja relação apropriada determina a comunicação com o outro (MIJOLLA, 2005).
O conceito da palavra
desamparo não foge muito do seu significado no senso comum. O que a difere na
teoria é a intensidade e o aprofundamento do estudo, assim como as consequências
que o desamparo originário traz no decorrer da vida do ser humano.
Os autores que
conceituam o estado de desamparo, também não fogem do seu significado
originário, do nascimento, da impotência do bebê decorrente à neotenia
comparado aos outros animais e, a importância do outro para suprir suas
necessidades primitivas (GARCIA-ROZA, 1998 e BIRMAN, 1999b).
Jacques Lacan³ (1958-1959/2003), mais conhecido como Lacan, não refuta o desamparo freudiano, pelo contrário, traz um pouco da Hilflosigkeit concedida por Freud em 1985. Lacan (1958-1959) o retoma em O Seminário: Livro 6, quando retrata que a Hilflosigkeit é a posição de estar sem recurso e a mais primitivas dentre todas. Neste mesmo escrito Lacan retrata a angústia como sendo pré-determinada e a dependência do Outro como sendo essencial para o desenvolvimento da estrutura não só da neurose, mas também de outras.
Jacques Lacan³ (1958-1959/2003), mais conhecido como Lacan, não refuta o desamparo freudiano, pelo contrário, traz um pouco da Hilflosigkeit concedida por Freud em 1985. Lacan (1958-1959) o retoma em O Seminário: Livro 6, quando retrata que a Hilflosigkeit é a posição de estar sem recurso e a mais primitivas dentre todas. Neste mesmo escrito Lacan retrata a angústia como sendo pré-determinada e a dependência do Outro como sendo essencial para o desenvolvimento da estrutura não só da neurose, mas também de outras.
[...]
é esta posição de estar sem recurso, mais primitivas que todas, e em relação à
qual a angústia é já um esboço da organização, pois ela é já espera- se não se
sabe de que, se não se articula em seguida, de qualquer modo ela é antes de
tudo Erwartung nos diz Freud. Mas
antes existe isto, Hilflosigkeit, o “sem recurso”. O “sem recurso” diante de quê? O
que não pode ser definível, centrável de nenhum outro senão diante do desejo do
Outro. É essa relação do desejo do sujeito, na medida em que ele deve se
situar diante do desejo do Outro que, entretanto, literalmente o aspira e o
deixa sem recursos, é nesse drama da relação do desejo do sujeito com o desejo
do Outro que se constitui uma estrutura essencial, não somente da neurose, mas
de qualquer outra estrutura analiticamente definida. (p. 452, grifos meus).
Nesta citação Lacan (1958-1959/2003) mostra o quanto necessário a
presença de um Outro, seja por necessidades primitivas, seja para o
desenvolvimento estrutural do psiquismo, e até mesmo para o desencadeamento de
neuroses, entre outros.
Assim como Freud em o Projeto
para uma Psicologia Científica (1895/1996) e em Inibições, sintomas e angústia (1926/1996), Lacan (1949/1998) 4 também relata, em uma breve passagem
pelo assunto, sobre a insuficiência motora do bebê como condições para o
desamparo originário.
O autor coloca que:
[...]
essa relação com a natureza é alterada, no homem, por uma certa deiscência do
organismo em seu seio, por uma Discórdia primordial que é traída pelos sinais
de mal-estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais. A noção
objetiva do inacabamento anatômico do sistema piramidal, bem como de certos
resíduos humorais do organismo materno, confirma a visão que formulamos como o
dado de uma verdadeira prematuração
especifica do nascimento no homem. (LACAN, 1949/1998, p. 100).
Outra concepção de Lacan (1959-1960/2008) referente à Hilflosigkeit está
relacionada ao término da análise e a sensação de abandono advinda deste
analisando deparado com o fim.
Lacan (1959-1960/2008), neste mesmo trabalho, faz uma alusão à morte, no
sentido do homem estar relacionado consigo mesmo deparado à condição de
desamparo (Hilflosigkeit), e não esperar ajuda de ninguém.
[...] o termino da análise, o verdadeiro,
quero dizer aquele que prepara a tornar analista, não deve ela em seu termo
confrontar aquele que a ela se submeteu á realidade da condição humana? É
propriamente isso o que Freud, falando de angústia, designou como o fundo onde
se produz seu sinal, ou seja, o Hilflosigkeit, a desolação, onde o homem, nessa relação consigo mesmo que e sua própria
morte - mas no sentido que lhes ensinei a desdobrar esse ano - não deve esperar
a ajuda de ninguém. (p.356).
Ainda em Lacan (1959-1960/2008), afirma que no final da análise
didática, o sujeito deve atingir o ápice de sua subjetividade, “no nível do
qual a angústia já é uma proteção [...] já se desenvolve deixando um perigo
delinear-se, enquanto que não há perigo no nível da experiência última do Hilflosigkeit”. (p. 356).
Lacan pouco se referiu ao conceito de desamparo, ao que trouxe não
difere do pensamento freudiano. O autor também relaciona o estado de desamparo
originário com questões atuais, como citado acima, porém, sempre com a essência
freudiana.
Outro autor de grande valia para os estudos teóricos atuais, Joel
Birman, em seu trabalho “A Dádiva e o
Outro: Sobre o Conceito de Desamparo no Discurso Freudiano”, 1999a 5, estabelece a distinção entre a palavra
e o conceito de desamparo de acordo com os pensamentos de Freud, porém, este
faz uma menção critica ao uso que alguns analistas fazem ao desamparo. “[...]
que os analistas façam referência ao desamparo – aqui e ali, em toda parte, até
– não quer dizer absolutamente que eles estejam falando da mesma coisa”. (p.
11).
A palavra e o conceito de desamparo, mesmo no discurso freudiano, pode
não dizer a mesma coisa, uma vez que o efeito pode mudar a cada escrito.
(BIRMAN, 1999a). Ainda para Birman 1999a, pode-se encontrar a utilização da
palavra desamparo, sem que esteja em questão o conceito, o contrário é verdadeiro,
pode-se encontrar a presença operatória sem que a palavra esteja explicita.
Neste escrito, o autor retrata a trajetória freudiana a palavra Desamparo ao seu conceito. A menção ao
que vem a ser o desamparo foi tratada muito cedo por Freud em O Projeto Para uma Psicologia Científica
(1985[1950]), porém, segundo Birman 1999a, foi “numa famosa passagem, sempre
repetida pelos comentadores [...] porém, seu uso é restrito e até mesmo
eventual no discurso inicial da psicanálise”. (p. 12.).
Só nos anos 20 que a palavra Desamparo,
passou a ocupar um grande espaço nos escritos freudianos, passando por
diversas obras. (BIRMAN, 1999a).
São de uma grande dificuldade situar a palavra e o conceito desamparo na
obra freudiana, perante, como já foi mencionado, na maioria de seus escritos o
autor trazer o conceito sem menção à palavra ou o contrário (BIRMAN, 1999a).
Apresentada algumas colocações referente ao desamparo, inicialmente
proposital em sua diversidade, mostrou-se que a base para o desamparo
originário é o nascimento e consequentemente a dependência do infante, uma vez
que este apresenta incapacidade em satisfazer suas próprias necessidades, o que
Lacan (1949/1998) chamou de prematuração
especifica do nascimento.
1 Projeto para uma psicologia
científica.
Escrito de Freud 1895, em uma linguagem neurológica, por meio às cartas
direcionadas à Wilhelm Fliess. A primeira versão publicada no texto Alemão em Aus den Anfangen der Psychoanalyse,
lançado em Londres em 1950. A tradução Inglesa em 1954 em The Origins of Psycho-Analysis.
2 Termo
descrito por Freud em o Projeto para uma
psicologia científica (1895), por
meio de cartas localizadas em suas correspondências a Wilhelm Fliess.
3 Jacques Lacan, 1901-1981.
4 Comunicação feita ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise realizado em
Zurique, 17 de julho de 1949.
5 Texto escrito a partir de uma
conferência pronunciada no Círculo Psicanalítico de Pernambuco, em Recife, no
Pré-Fórum de Psicanálise, em 18 de março de 1999.
Este assunto é de extrema complexidade !
ResponderExcluir